quinta-feira, 20 de junho de 2013

Oh, My Dear Valentine



Valentine tinha belos olhos azuis e cabelos cor de cobre que brilhavam mais que o próprio sol, se as metáforas repetitivas e banais ainda forem permitidas. E ela tinha a leveza de um pássaro quando rodopiava nas pontas dos próprios pés e orgulhava a professora de balé com seu esforço e dedicação. Valentine não se cansava de se dedicar à essa paixão, ocupava todo o tempo livre que tinha com um sonho recorrente, via-se em um imenso teatro onde ela dançava bem no centro e milhares de pessoas aplaudiam. Valentine, a bailarina Valentine. Doce, bela, inocente. Rodopiando alegremente pela sala, em frente ao espelho. Os olhos cansados de tanto ensaiar, uma vez e outra e mais outra os mesmos passos. A mãe chama para o almoço, mas amanhã é dia de audição, Valentine não pode comer. Ninguém julga os esforços de Valentine como esforços em vão, Valentine é a menina dos olhos de todos. O pai de Valentine estaria orgulhoso, mas tudo que Valentine ainda possui dele é a velha fotografia que guarda junto ao abajur no móvel ao lado da cama. Ela dá um beijo no pai todas as noites antes de dormir, conversa com ele e lhe conta os seus sonhos. A mãe atrás da porta desejaria que Valentine lhe contasse seus sonhos e desejos. Eu estou bem aqui, pensa, carregada de melancolia e rejeição. Se sente amarga. Valentine apaga as luzes e dorme com o retrato do pai contra o peito, todas as noites. E a mãe não pode dizer nada, mas chora sozinha no quarto ao lado, todas as noites. Chora costurando a saia cor-de-rosa de tule de Valentine. Chora consertando suas sapatilhas com fitas de cetim para que fiquem confortáveis. Valentine é bela, parece uma pintura delicada, mas por dentro está desmoronando como uma construção milenar às ruínas. O corpo todo treme, pois Valentine não come há dois dias. Precisa estar perfeita, precisa estar bela, precisa impressionar a professora e orgulhar o pai. Precisa fazer tudo por todos, mas esquece de fazer algo por si. Valentine ama o balé, mas ainda se lembra do quanto amava os bolos gelados de chocolate aos sábados de manhã que o pai passava a noite de sexta assando. Hoje os bolos são uma lembrança, que Valentine apaga com um sorriso sem verdade lançado aos estranhos que a cercam, enquanto tenta equilibrar-se na ponta dos pés. Seu equilíbrio é perfeito, seus ossos ainda são fortes, mas seu coração quebra sempre que se lembra dos bolos do pai, do sorriso do pai, dos abraços aconchegantes do pai. Valentine chega em casa arrasada, a audição não foi boa o suficiente. Na próxima você estará preparada, lhe disseram os juris. A professora olhou para ela com decepção. A mãe não entendeu, ela nunca entendia e Valentine nunca queria falar. E o pai deveria estar decepcionado. Que se danem, pensa Valentine e atira com toda a força o porta-retratos com a fotografia do pai contra o espelho. Vê sua imagem refletida se despedaçando, as lágrimas borrando a maquiagem tão cuidadosamente modelada para o dia que deveria ter sido grande. Observa a própria figura esguia e faminta diante do espelho, sente-se miúda e fraca. Os joelhos cedem ao corpo e ela pouco se importa com o tutu recém costurado pela mãe que ainda leva ao corpo. Que rasgue, eu não me importo. Apanha a fotografia do pai entre os milhões de cacos de vidro, a única palavra que consegue pronunciar é perdão. Os cacos de vidro no chão lhe parecem charmosos quando apanha um deles entre os dedos e o observa com cautela. Não sabe calcular qual foi o tempo necessário para render-se ao encanto que sentia pelo brilho de suas pontas irregulares, nem o momento em que obteve sua redenção. Largou a foto de lado e o vidro passeou pela pele da coxa, um pouco acima de onde a saia delicada cobria. A meia fina foi rasgando junto com a pele e a coloração passando do rosa-claro para o vermelho vivo e viscoso, feito tinta sem diluir. As lágrimas pareciam mais quentes, mas a dor que sentia a fazia se sentir pura, não pensava no pai, na professora, nos juris ou na mãe. Não pensava nos bolos de chocolate aos sábados, nas refeições que andou pulando pelos últimos dias. Não tinha culpa, além da própria culpa de existir. Sentia-se íntima consigo mesma, sentia dor e a dor silenciava todos os seus pensamentos confusos. Valentine encontrou a chave para um segredo que jamais deveria ser desvendado. Hoje, três anos depois de sua descoberta, Valentine não se sente mais pura e sim frustrada. Sabe que desconfiam do seu segredo e isso já não importa. Hoje, depois de três anos, conseguiu um papel importante em uma peça importante. O Cisne Negro. E o Cisne Branco, também. Entendia o sarcasmo dessa metáfora muito bem, mas era como uma piada de si para si mesma. E não ousava rir de sua própria desgraça. Valentine estava tão sozinha que suas melhores amigas haviam se tornado estilhaços de um espelho que refletiam a sua própria imagem. Mas ela se via por dentro. E ninguém mais a via por dentro daquela forma. Era apenas ela e ela. Valentine e Valentine. O Cisne Negro e o Cisne Branco. A Bailarina e seu Demônio.

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