segunda-feira, 15 de julho de 2013

Escravo das Palavras



"Escravo das Palavras"
Fábio de Almeida Vanzo
em Sarça Ardente

Este é meu testamento, meu próprio eu que se entrega. Estou no ponto de onde não há mais volta, após o caminho inteiro trilhado, a devoção de uma vida, a busca da existência inteira. Desistência.  Faltam-me as palavras para escrever e descrever as coisas, porque palavras são etéreas, fugidias. Livres. Por serem livres, me fazem escravo, me faço servil. Entrega, desistência, rendição às palavras. Nasci para lhes ser submisso. Às palavras, somente as palavras. Palavras que são todas as coisas e estão em todas as coisas.
Palavras para os sentimentos, palavras para as plantas, palavras para os animais, palavras para a natureza, palavras para o ser, palavras para o nada, palavras para as palavras, palavras para mim, palavras para você, palavras para nascer e perecer. Palavras de línguas estranhas, palavras em língua morta. Palavras surdas e mudas, palavras de uma vida nova. Palavras fora do tempo, palavras voando com o vento. Palavras na sua boca, palavras na minha roupa.
Construo imitações de palavras, monumentos às próprias esfinges que me devoram. Monólitos, menires, zigurates e obeliscos. Agarro-me a elas. Tento devorá-las, degluti-las, arrancá-las de onde estão, tê-las só para mim. Mas não são de ninguém, não estão para mim. Sempre desejá-las e nunca entendê-las. Às palavras devo ir, às palavras devo meu ser, sempre às palavras, que são meu norte, minha sorte, minha morte. Palavras que me assombram, consolam e desolam. Porque preciso ir além das palavras, até as próprias palavras que as representam. Palavras das palavras das palavras das palavras. Atravessar a rebentação, mergulhar sem respirar, aprender a respirar sem ar, ir até o fundo sem saber nadar. Desintegrar-me a fim de conhecer cada átomo, até o último som, o primeiro sim, o interior do interior do interior. Porque preciso dessas palavras. Lendárias, fantasmagóricas, divinas, imortais. Adormecem, mas nunca morrem. Perdoam, porém nunca esquecem. Vigiam, mas nunca dizem. Existem antes mesmo de existir.
Busco-as fora do Universo, dentro de mim, além da realidade, aquém da minha existência. Onde quer que se encontrem, onde quer que nos persigam. E elas seguem-nos como fantasmas, como sombras, como nuvens, como estrelas, sempre a nos vigiar e julgar. Não estão nos dicionários, não estão nos romances, não estão nos jornais. Não entram nos olhos, não saem das bocas, desconhecem os ouvidos. Impronunciáveis, ilegíveis, inaudíveis. Jamais ditas, ouvidas ou escritas.
Tudo que não é literatura me entristece, aborrece. Ainda assim não sei o que é escrever realmente, não consigo atingir o âmago, o mais amargo da língua, que emerge de torrentes caudalosas, das ilógicas e plácidas veredas de margens inalcançáveis, os mais longínquos horizontes, os mais altos montes, as mais distantes mentes, das mais remotas paragens. É preciso ter fé, mais cega, angustiada e desesperada do que em qualquer deus. Esperança cheia de angústia e agonia, enquanto me nutro de pálidos ícones que não são sequer migalhas esfareladas das altíssimas palavras.
Horror, abandono que não pode ser descrito ou visto, mas é terrivelmente sentido. Silêncio de aturdir, daqueles de fazer zumbirem os ouvidos. Presença imoladora de silêncio abominável e desolador. Nem dedos percorrendo cantos de folhas, nem a tinta lambendo o papel; palavras são proibidas. Descobrir as palavras é ser consumido por elas, é morte instantânea e absoluta.
As palavras se alimentam de mim, para depois me jogarem fora, aos restos e seguirem para outros mundos. No fundo de uma caverna, dentro de uma sombra, entre a menor divisão de tempo e de espaço que possa existir nas mais complexas teorias, nos mais insanos pensamentos. Visões ardentes, que consomem até o fundo quem as vê. Ajoelho-me em reverência, em temor. Mas palavras são inatingíveis, impiedosas. Palavras são perversas, vis, dissimuladas, se impõem pelo medo, pela força, pelo ódio. No entanto submetemo-nos aos seus desmandos, em uma genuflexão de quem sequer tem coragem de encarar a verdade, que é o terror.
Palavras existiam antes de tudo e existirão depois do nada. Então eu as imito, pelo que sonho, pelo que imagino delas, pelas sombras que me encobrem, pelos rastros que deixam quando, qual avatares caminham pela Terra nas madrugadas infindáveis, deixando no ar um perfume quase inexistente. E guardo aqueles vultos, aquele cheiro, aqueles ruídos a meio caminho entre meu coração e o Inferno. Todas as noites sonho e imagino as palavras, que se equilibram entre meus lábios mornos, semicerrados, berço de uma voz que morre antes de ver a luz negra das primeiras e últimas horas.
Fome, sede, orgasmo, dor, vida e morte de palavras. Meu próprio ser que se extermina, reduzido a estilhaços de significados desconexos. Desejo impossível de transcender a carne e a alma, o coração e a mente, e ultrapassar os mais distantes limites da linguagem. Até o fim, até o fundo, até as menores partículas das partículas, o espírito do espírito, o deus dos deuses, a totalidade de tudo, o que há, ao mesmo tempo, de maior e menor.
Fragmentar as palavras até que os pensamentos sejam impossíveis, até que deixem de existir (e, ainda assim, continuem existindo), até o radical mais primordial, o verbo original, o primeiro som. A palavra que a tudo criou, a palavra que criou a si mesma, a palavra que criou a criação das coisas, o próprio ato de qualquer coisa. A palavra aberta, a palavra mais certa, a palavra verdadeira. Qual terá sido a primeira palavra, a que deu origem a todas as outras, e a tudo que existe ou não existe? E qual será a última palavra, a que restará quando nada mais restar?
As palavras são o próprio desamparo, a voz e as mãos de um deus sem nenhuma compaixão. Nenhuma resposta, apenas decepção. Reunião casual de letras, de signos, de símbolos decodificados, cheios de significados agregados, que desagregam toda a matéria que conhecemos. As palavras causam dor; o maior sofrimento que pode haver é causado por uma palavra. Desabam como línguas de fogo. Rasgam a terra como magma.
Palavras são assustadoras, me fazem perder o sono, invadem meus sonhos e despejam medo, terrores inomináveis e intermináveis sobre meus desejos e segredos. Palavras dolorosas, que arrancam pedaços de pele e lascas de ossos, no encontro frente a frente com o pior de nossos temores.
Contemplo a mais pura revelação: ecos estelares, os últimos degraus da escada para o primeiro jardim. As palavras não cabem em mim, não cabem em si. Não cabe a mim descrevê-las, nem mesmo escrevê-las.
Atiro-me, resignado, de olhos fechados, ao fosso sem fundo, ao poço das almas perdidas de torturadas das quais as palavras se alimentam. A própria alma em troca de algumas palavras, quaisquer que me concedam a presença.
Para escrever, preciso estar só, distante do Sol, em silêncio, porque som é a expressão da palavra. Senão pela qualidade, pela quantidade. A melhor palavra, a maior palavra. Escrevo o tempo todo, sobre todos os tempos. Invento novas palavras, me esqueço das antigas.
Sempre em dúvida e em dívida com as palavras. Palavras que me lavam, me levam, me enlevam. Palavras de luto, palavras de luta.
Cala a boca quando se morre, mas as palavras permanecem. Silencia a voz, são engolidas as raízes, perecem até a linguagem, as sílabas, os fonemas, mas elas mesmas são formadas pelas palavras mais elevadas, as únicas palavras.
A palavra transcende até seu próprio esqueleto, sua própria essência. Antes de haver deuses, universos, realidades, ser e tempo, havia as palavras que designavam tudo, imóveis, à espera e à espreita de algum momento, algum movimento.
Mesmo os mais íntimos sons e as mais simples simbologias são formados pelas palavras abissais e celestiais, divinais e infernais. Palavras diabólicas e angelicais, que elevam e enterram conforme o sabor de seus humores.

Palavras... 

Minha única verdade, 

minha única maldade, 

minha única vaidade, 

minha única realidade.

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